Quando as noites ainda eram iluminadas pela luz triste dos velhos candeeiros, correu pelo mundo afora, amaldiçoando sua sorte e sofrendo seu castigo, a burrinha de padre. Conta a lenda que a burrinha de padre foi uma moça muito bonita, que viveu por essa região. Muitos quiseram desposá-la, mas seu coração já tinha dono: um padre.
E como foi de se esperar, não tardaram surgir histórias de uma burrinha forte, fogosa, que corria desde a Praia da Caponga até a Jacarecoara nas noites de quinta para sexta. Seus arreios eram de ouro, trazia no pescoço grosso colar de contas que chocalhavam e anunciavam sua passagem pelas ruas escuras e desertas.
A burrinha de padre era valente e costumava perseguir os viajantes, que muitas vezes surpreendidos viam-se em grandes apuros. Os moradores daquela região evitavam sair à noite naqueles dias e não deixava de haver ninguém que, na segurança de sua casa, via por entre as frestas de sua janela, a burrinha passando a galope pela estrada em grande fúria. A pobre besta era condenada a passar por sete cemitérios antes do galo cantar, para então, poder voltar a sua forma humana.
Certo senhor da região, cujo nome o tempo não guardou, resolveu ter um encontro com a burrinha. Armou-se de grande peixeira afiada e pontiaguda e assim partiu. Em tocaia esperou por três vezes, até que um dia ouviu um galope e preparou-se para o ataque. Quando o desavisado animal passou, o homem surgiu na estrada saindo de seu esconderijo e golpeou a pata dianteira da burrinha. O golpe foi certeiro, o animal desequilibrou-se e caiu. Mas antes que o homem partisse para um segundo ataque, o animal se reergueu e partiu para cima do homem que se deixou cair no chão sendo pisoteado pela burrinha, que partiu mancando.
Dizem que a burrinha de padre não conseguiu, machucada como estava, cumprir sua sina naquela noite de visitar os sete cemitérios e que amaldiçoada pelo resto de sua vida, teria saído mundo afora. Outros dizem que ela fora desencantada, porque assim se desencanta tais criaturas; outros dizem que só cavalgando tal animal se poderia quebrar o encanto; outros ainda afirmam que somente libertando-a de seus arreios a livramos de tal castigo; e outros que basta um pequeno furo com uma agulha não usada para a quebra do encanto.
Nunca mais se ouviu o galopar da burrinha de padre naquela região e o homem corajoso, talvez arrependido ou enlouquecido, partiu pelo mundo à procura do animal.
[Milson Almeida. A Burrinha de Padre. In: A Serra da Mataquiri, o Rio Malcozinhado e Outras Histórias. 2. ed. Fortaleza: Premius, 2018, p. 17-18. Ilustração: Wescley Barros Borges – colorização: Hugo Cavalcante]