Minha avó materna, Theotônia, nasceu em Mutamba, vila de pescadores localizada no atual município de Icapuí, no Ceará, no “ano dos três oitos”, 1888, século XIX, como ela dizia. Contadora de histórias de trancoso com elementos de assombração e fantasia, sabia como ninguém dar vida a seus relatos. Gostava de ler contos como “As Mil e Uma Noites” da literatura persa e “O Homem que Calculava” de Malba Tahan. Já era idosa e convalescente. Residia numa casa em frente à Igreja Matriz de Cascavel. Ali eu a visitava frequentemente em companhia da minha mãe. Uma das histórias mais surpreendentes contada por ela era sobre a Caipora.
A Caipora só aparece ao meio-dia, depois do almoço, quando as pessoas descansam e os animais – galinhas, porcos, vacas e cavalos – procuram a sombra das árvores para se protegerem do sol. O sinal da sua aproximação era um forte vento, que varria as areias alvas dos morros, dunas, perto da minha morada. Era pretinha, pequena e caminhava com uma só perna, pulando, pulando… Queria fumo de rolo para saciar seu vício: fumar cachimbo e mascar. Mamãe avisava a todos os filhos para manterem-se dentro de casa, com a porta da cozinha trancada à tramela naquela hora do dia. E avisava:
– As crianças que negam fumo à Caipora são carregadas para a sua morada no matagal dos morros. Ela mata todas.
Uma vez perguntei-lhe:
– Vovó tinha medo da Caipora?
– Sim, todos nós tínhamos medo.
– A senhora viu alguma vez a Caipora?
Vovó deu uma pausa súbita na conversa:
– Deixa de perguntar, menino! Você é o João Pergunta, já quer saber demais.
Eu ficava perplexo imaginando como seria um encontro com uma criatura dessas. O pavor, o medo que ela causaria… A dúvida se minha avó havia visto mesmo a Caipora me acompanhava até em casa e povoava meus sonhos.
Nota: Ao que parece, no Nordeste não havia a figura do saci, pelo menos não na região do litoral do Ceará, onde hoje é o Cascavel e vizinhança, embora houvesse histórias com características semelhantes ao gênio de uma perna só. Aqui essas travessuras eram atribuídas à Caipora, outro gênio folclórico que parece se confundir com o que hoje se conhece por saci e curupira.
[Evânio Reis Bessa. A Caipora. In: A Serra da Mataquiri, o Rio Malcozinhado e Outras Histórias. 2. ed. Fortaleza: Premius, 2018, p. 43-44. Ilustração: Wescley Barros Borges – colorização: Hugo Cavalcante]