Em 1918, um carro saiu de Fortaleza e chegou pela primeira vez à cidade de Cascavel. Veio pela Estrada do Telégrafo, do Correio Nacional ou Estrada do Fio, chegando à Praça do Poço, atualmente Praça Juvenal de Carvalho ou, como conhecemos, a Praça do Hospital. Era o único caminho de areia, cruzando alagadiços, brejos, lagoas e riachos que interligava a capital Fortaleza com as cidades e vilas do litoral leste: Messejana, Aquiraz, Pindoretama (que na época se chamava Baixinha), Cascavel, Beberibe e Aracati. Por ela transitavam andarilhos, viajantes a cavalo, carros de boi ou tangerinos conduzindo comboios com mercadorias no lombo de burros e jegues.
Pouco existe a preocupação de resgatar a memória do carro no Ceará. Somente escassos depoimentos podem recompor parcialmente a chegada do primeiro automóvel em Cascavel.
A escritora e poetisa cascavelense Maria Eunice Coelho (1913-1999) em seu depoimento para biografia na primeira edição do livro “Cascavel 300 Anos” narrou: “Da infância, gostava de relembrar um fato que causou enorme celeuma na cidade de Cascavel: a chegada do primeiro automóvel, de propriedade de Juvenal Monteiro. Era um carro Ford com buzina estridente, que passeou pelas ruas provocando a curiosidade dos moradores. A professora de alfabetização, Ana Sidou (D. Aninha), deu ênfase ao fato, decretando feriado naquele dia. A criançada saiu a correr pelas calçadas, acompanhando o veículo, com grande algazarra e cheia de admiração”. ¹
Outros moradores diziam que “o carro chegou à cidade por volta das dez horas da manhã. A pequena população ficou agitada… Espantou os animais que estavam amarrados às árvores na rua. Relincharam e arrebentavam o cabresto e correram desembestados sem rumo… Além das crianças, os adultos saíram de suas casas para conhecer um veículo motorizado, que era barulhento e fumegante. Havia uma grande curiosidade de todos os moradores. Alguns deixaram o almoço no fogão à lenha ou sobre a mesa. Ao retornarem, encontraram a comida queimada ou as aves e animais domésticos – galinhas, capotes, patos e gatos – naquele histórico dia já haviam saciado sua fome – pela primeira vez – antes dos seus donos!” ²
Mas muita gente, que morava em sítios e casas próximas por onde o carro passou, estava cuidando de seus roçados ou zelando seus animais e, assim, “alguns moradores, à margem da Estrada do Fio, não assistiram à passagem do automóvel. Ao caminharem pela estrada, no dia seguinte, ficaram amedrontados e pasmos com as pegadas ou rastros duplos dos pneus do carro na areia!… Então imaginaram o tamanho da serpente que passara por ali. Muitos pediam de joelhos e de mãos postas ao céu e evocavam São Bento – o santo protetor das picadas de cobras – para proteger os moradores do lugar. A lenda da ‘serpente gigante’ que habitava os alicerces da Igreja Matriz, tão difundida pela população, era verdadeira! A serpente estava faminta e solta e vai nos matar!
– São Bento nos proteja!” ³
Dessa forma, muitos de Cascavel correram dos rastros do automóvel, acreditando ser serpente gigante, que o povo agora diria não ser somente uma, mas duas!
[Evânio Reis Bessa. O Rastro das Serpentes. In: A Serra da Mataquiri, o Rio Malcozinhado e Outras Histórias. 2. ed. Fortaleza: Premius, 2018, p. 93-95. Ilustração: Wescley Barros Borges – colorização: Hugo Cavalcante]
- Cascavel 300 Anos, 259p. 1996.
- Depoimento de Ana Evangelista (1899-1991).
- Depoimento de Balthazar Coelho Neto (1925-2014).
O primeiro automóvel desembarcou no Brasil em novembro de 1891, trazido por Alberto Santos Dumont (1873-1932). Em Fortaleza, o primeiro veículo a motor, produzido pela fábrica Rambler, desembarcou em solo cearense há 109 anos, em março de 1909, de acordo com informações do livro “Coisas que o tempo levou” (1939), de Raimundo de Menezes.